Cego seja eu dos meus olhos

Cego seja eu dos meus olhos

há qualquer coisa de ti que me pertence
nesse olhar depositado na linha do horizonte
tudo é tão estéril nesse mar que brota
sem que da noite se solte um gemido

agitam-se os ventos perdidos em canas firmes
essa trave dos olhos que não se solta
Tornei a ver-te mãe,
essa forma que gente que me gerou,
que longe me levem as palavras engolidas por deus
que me condene o demo nas tentações que segui
eu que em ti me fiz prazer
pela forma de amor que de mim vivi…

cego seja eu dos meus olhos
esses que a terra há-de comer
pela visão que mantenho do teu corpo
pela sede que mantenho do teu viver…

Alberto Cuddel
19/12/2019

Rosto cinzento como a névoa de leste

Rosto cinzento como a névoa de leste

nas noites que se apartam do dia
amarrada seja a lua em escorpião
pernas imóveis e agulhas que lhe perfuram o dorso
tenacidade persistente do que é e tem de ser
porque assim é desejado no íntimo
força mobilizadora do desejo
ainda que chova copiosamente
cerrados sejam os dentes pela carne que arde…

um nó martelado nas vísceras
esse olhar roubado e distante
algemado pela doença que mói
estampada nos meandros do rosto feminino
granítica desilusão bombardeada nas pálpebras
há uma força de capricórnio que nos mantém de pé
nesse rosto cinzento como a névoa de leste
o sorriso é apenas memoria dos dias de maio
como um pólen invisível que nos faz tossir…

no rosto cansado carregas nas mãos
esse respirar das muralhas pulmonares
que em nós se faz vida
fogo que arde oxigenado pela esperança
músculo sanguinário que não pensa
mas sintomaticamente sente…

Alberto Cuddel
16/12/2019

Era para ser o que foi…

Era para ser o que foi…

“Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.”
José Régio

deste nascimento parido em tempos frios
aconteceu o que haveria de acontecer se fizesse sol
tudo tão natural, tudo tão certo, tudo tão perto…
há nestas fome de palavra uma essência de existir
uma vontade sórdida uma sede que greta a voz
ciprestes arrancados da terra pelo lado oposto
pelas raízes como se engolidos pelo inferno
que me importa o ressentimento romano,
os estábulos, estrelas que caminham ou réis
sentados em camelos de costados doridos,
se é ao pai do menino e a sua tentação que obedeço?

há na busca da palavra certa,
no esmiuçar da consciência filosófica
uma verdade pobre, um trabalho inglório
descobrir que tudo é porque assim está certo
nasci do acaso improvável,
numa das infinitas improbabilidades que se confirmam,
tudo é acaso, apenas regido por esse destino
pela chama da existência…
porque era para ser o que foi, um acaso de sorte
entre a vida do homem ou a sua morte!

Alberto Cuddel

Loucura consciente

Loucura consciente

Encontro em vós expoente máximo da loucura,
Contra-ciclo, contracorrente, amor imprudente,
Saudade incoerente, elevada conscientemente,
À saudade dormente, ao encontro noite segura,
Diferentes entre a gente, verdadeiros no sentir,
Com palavras amigas ao acordar e ao dormir,
Partilhas, vivências, loucos amantes literários,
Abertos ao mundo, sem julgamentos arbitrários,
Sois loucos, bem o sabeis, mas bons até demais,
Continuai, não mudeis, pois sois assim,
Firmes amigos, constantes e leais!

Sírio Andrade®
In: Antologia Depressiva

Momentos de outra vida III

Momentos de outra vida III

Sinto-me livre na tua partida, uma ausência liberta de todo o suposto controlo imposto pela liberdade partilhada de uma felicidade ilusória. Sinto-me livre na tua partida, liberto das garras do sentimento ignóbil que nos molda e tolhe a razão, os desejos carnais de posse, de todo o tesão religiosamente reprovável, pecaminoso.
Sinto-me livre na tua partida, nem toda a felicidade nos faz efectivamente felizes, enclausurado que estava por ti, preso nesta deplorável jaula, limitado pela epiderme, rodeado de preceitos e preconceitos, socialmente e moralmente aceitáveis…
Sinto-me livre na tua partida, nestes míseros e escassos minutos onde na tua ausência de homem perfeitamente convencido que me controla, eu poeta assumo, não és ninguém, não és nada, não te permites como eu sonhar livremente as palavras… eu neste tempo que nos separa sou o tudo no pouco nada que me resta!…

Sírio de Andrade®
In: Momentos de outra Vida

Eu quase poema

Eu quase poema

Gotas cristalinas embatem na vidraça
Lágrimas perdida caídas do nada
Almas solitárias choram sozinhas
Grito chorado de não ser amado!
Dispo-me de mim, de cada palavra
A cada nome, uma verdade
A cada poema, capa caída
Não me mascaro, espio o passado
Sou disforme ausente
Consciente de mim
Arranco palavras, capas
Versos, mascaras
Dispo-me de mim
Para que conheças por fim
O nada que sou
No tudo que escrevi!

Gotas cristalinas embatem na vidraça
Lágrimas perdida caídas do nada
Anjos perdidos, já não cantam assim
Choram caídos, apenas meu fim!

Sírio de Andrade®
In: Antologia depressiva

Poder de me dar ou tirar!

Poder de me dar ou tirar!

Olho-me no espelho
não reconheço a imagem disforme
do homem errático que se reflecte
perdido nos sonhos rosa do mundo
encontro-me,
nas folhas que apodrecem
na berma suja da estrada
suspenso nos fungos que me consomem
eu, imagem perdida e abdicada de mim
por um tudo, que nada é de concreto
abjecto sentir que me condena
à doce loucura do suicídio
aí de mim, que tenho o poder
para me conceder ou abandonar a vida!

Sírio de Andrade®
In: Antologia Depressiva

Contornos

Contornos

Dou de mim,
De um corpo vazio
Dou de mim,
Do que não tenho
Dou de mim,
Do que imagino
Dou de mim,
Do que em mim invento!

Penso, não sinto
Sinto, não penso
Corro, ainda parado
Paro, estando correndo!

Reinvento-me,
Reescrevendo-me no passado,
Vivendo nas memórias momentâneas,
Desprezo dos homens, traído sentir
Numa suicida ansiedade
De me diluir no tempo…

Sírio de Andrade®
In: Antologia Depressiva

Dormindo e acordando, agora e depois,

Dormindo e acordando, agora e depois,

Talvez sonhando
Cansado, cansado
Desta distância
Tão vazio e tão cheio
Tão certo e tão concreto
Nesta certeza que dói
Neste sentir que mói
Tão perto, tão perto
Ai, bem ai dentro do peito…

Que sejam os dias alvuras
As noites madrugadas
Que sejam meses, semanas
Tão perto, tão certo
Este querer concreto
De viver sempre
Ai, bem ai dentro do peito…

Que se mar, rio que leva
Que seja hoje, amanhã
Beijos nos silêncios
Lábios e risos
Que seja saudade
O sorriso dos olhos
É na verdade
O amor que de ti carrego
No peito certo,
Tão longe, aqui tão perto!

A ti meu amor
Que a vida seja nossa!

Alberto Cuddel
01/10/2018

Há rasgos de luz que nos cortam a madrugada!

Há rasgos de luz que nos cortam a madrugada!

Há sonhos despertos
E mares que nos acordam
Há sempre uma vastidão no peito
Um sentir certo, um querer perto!

Há rasgos de luz que nos incendeiam
Há um calor no corpo que nos acorda
Cama de espuma das nossas vidas
Pegadas em areia molhada maré vazia

Há sonhos na madrugada
Um cheiro a café e beijo
Há passeios de mão dada
Há em mim o teu desejo!

Há rasgos de luz que nos cortam a madrugada
Há um tempo sem pedir nada
Na vida de um verde olhar
Há esperança por amar!

Alberto Cuddel
01/10/2018

Nesta poesia inteira,

Nesta poesia inteira,

Nesta poesia inteira,
Metade de mim,
Metade de ti mesma,
Uma certeza, o poema vive,
A vida de cada um de nós!

Nesta poesia inteira
Em lágrimas de cabeceira
O sorriso de um acordar
Uma certeza de amar!

Nesta poesia inteira
Vivo eu vives tu
Sem permissões a poesia
Vive sem eira nem beira!

Nesta poesia inteira
Vive o presente
Um passado diferente
Um futuro sagrado poente…

Alberto Cuddel
08/10/2018
Castanheira do Ribatejo, Portugal

Abraço-te na eutanásia da saudade

Abraço-te na eutanásia da saudade

mata-me a saudade no teu abraço
estreite-se-me a alma entre braços firmes
habita-me com urgência o corpo
mata-me a fome de amar, faz-te em mim…

olha a imensidão das águas, senta-te comigo
espera entre nevoeiros a esperança de me ver chegar
regista na fé a certa virtude de permanecer no peito
neste amor interior que se fez em ti sede de viver.

amar-te-ei nesta virtude que mão dada
nesta cara simples, limpa e erguida,
amar-te-ei hoje, agora, amanhã também
ai onde crepita o tempo, onde se consomem as horas
amar-te-ei na sepultura da saudade,
neste amor sem vaidade
onde a fome se faz carne
onde a sede se faz abraço
onde o tempo não morre e pára
nesse orgasmo fálico,
onde a saudade se faz morta…

Alberto Cuddel

Que ninguém me diga mereces melhor…

Que ninguém me diga mereces melhor…

Que ninguém me diga nada, nem antes nem depois
Nesta água imunda que não me lava a alma
Arranco do corpo a pele, essa conspurcada por homem
Violada, dilacerada, por obrigação consumada, esposa escrava

Que amor doente é esse na posse de gente
Eu que de pernas abertas ao mundo
Amarradas as bordas da cama, te recebi
A ti esposo porco e doente, para satisfação
As carnes? Que carnes? Apenas dor e podridão…

Antes, antes não sabia, apenas castigo e merecia
Mas agora, agora sim doentes estava eu, sou…
Dependente de um “amor” de um gesto e de um tesão
Quem me queria? Quem me havia de querer, morta e ferida
Por que eu, eu morria, estava morta e vivia…

Hoje, hoje basta, basta, basta…
Fugi, e levantei, ergui a cabeça e matei
Matei-te a ti em mim, hoje vivo, com dor,
Com mágoa, mas amo-me por fim…

#poeticamortem
@Suicídio poético
03-12-2019
04:49

Nessa vontade máxima

Nessa vontade máxima

um medo que me desabita
uma alma que grita despedaçadamente
um rei que morreu, lá longe…
rasgam-se as veias em dilacerado ventre
mãe? onde morrem os teus filhos?
por um pedaço de terra?

nesta vontade máxima de frio
a terra que de abre de frente
pelo medo e vontade de gente
o amor é um axioma sentido

pelo fogo que vos arde no peito
desta verdade tão crua que aceito
já não há vinagre ou defeito
que eu vos possa apontar

também eu fui
pela estrada de luz,
pelo caminho que o rei me conduz,
grato vos sou,
pela pátria da voz,
neste fado gritado
onde a saudade somos nós…

Alberto Cuddel

Ecos lilases

Ecos lilases

Desses ecos que ressoam em paredes vazias
Perdidas as maças caídas no chão
Vestes rubras, ocas perdidas do ser
Há nesses ecos lilases ávidos de gestos
Uma real beleza que se perda na areia…

Onde nos morrem as palavras quentes?
Gritadas e gemidas em vales perfeitos e verdes
Onde nos mostram a real vida
Na bênção da loucura da mente
E morrem vazios os copos?

Ecos de um vazio conformado
Entre palavras secas e ocas de vida
Jazem os pés deitados em sentidos opostos
E camisas de noite amarelecidas na gaveta…

Há ecos lilases de um tempo que foi
Esse que não conta, esse que é apenas saudade
Do que um dia foi vida…

Alberto Cuddel

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