Faz-se vida em mim

Faz-se vida em mim

o raio de sol entrou de repente em mim
como um gume metálico que me rasga a alma
um aliviar da força e da fé que se ilumina
fez-se fogo no madeiro e veio a luz…

rabiscam no meu íntimo uma ideologia
uma epifania descrita numa métrica fingida
como uma luz difusa que cruza o pinhal
cabelos de oiro e uma forma mística de má-fé
há um espetáculo de luz que me nasce dos dedos

numa estratégia de sobrevivência, fazem ninho
ali, no alto daquele verso, depois da vírgula
entre as hastes de uma consoante, e o berço de uma vogal

não seria de esperar que nascessem…

depois do sol, a chuva irrigou-me os pés…
ganhei raízes e parti dali… agora sabia quem era
e o sol, o sol iluminava-me a face…

há uma obsessão indiciosa de auto-negação do que se é…
e isso revolta-me.… pois a poética é.… sente-se poesia
e ela não se define… apenas bebe-se como alma sequiosa
que tenta em vão matar uma sede que nos nasce…
E as palavras fazem-se vida em mim, como num altar…

Alberto Cuddel
16/07/2021
1:00
Alma nova, poema esquecido – XII

Rabiscos da busca eterna…

Rabiscos da busca eterna…

palavras obrigatórias
(gesto, sombras, hoje, bocas, breves, beijo, asas, chicotes, instante, terra, pregão, nosso)

há nesse pregão atirado ao acaso
uma fome de bocas, que se abrem
como se as sombras das palavras
nesse gesto incontido lhes saciasse a alma
são breves esses dizeres eclécticos
essas verdades furtivas que se estendem
e fogem de asas abertas a um mar nosso
ali, depois de ontem ou num hoje pedinte…

por um instante calo-me
[…]
é breve o silêncio que me corta o corpo
como chicotes arremessados por mãos estéreis
judas também o deu… um ósculo, um beijo
uma traição premeditada trazida à terra…
estava escrita, ele não a escolheu, foi escolhido…

escuto…
[…]
há esse silêncio que nos condena…
essa verdade cavernosa que nos come por dentro
a consciência…
e o olhar melancólico de uma mão estendida
e a minha, encolhida, vazia…
mas… no meu silêncio, arremessada como uma pedra…
atiro…
– desculpa, perdoa-me, nada tenho, além das palavras que me deram…

Alberto Cuddel
13º Desafio Livro Aberto 2021

15/07/2021
1:00
Alma nova, poema esquecido – XI

A vida que desconstruímos

A vida que desconstruímos

a vida é um caminho rustico sem destino traçado
e passamos pelo moinho, cruzamos pontes e rios
e segue-nos o céu, os dias e as noites, e vamos
apenas pelo ter de ir, há quem nos empurre
em direção ao depois e ao precipício, ali, diante dos pés…

[…]
tenho sonhado muito, por entre esse arvoredo dos dias
de sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer,
e esquecer não pesa e é um sono
sem sonhos em que estamos despertos.
em sonhos conseguimos tudo,
até fazer chover no deserto, ou rosas no teu regaço…

esse caminho que desconstruímos na travessia das dunas
nessas que se movem na noite ao sabor dos ventos
há um absurdo nesta vida real, onde sonhamos o desejo
nessa complexidade das relações humanas, na linguística
nesse querer negativo, nessa afirmação do não…
nesse jogo do prazer que é sem ser, sendo que não é…

e sonho, e sonhamos, e vivemos e acertamos
erramos, e caímos… e morremos, felizes por ter sonhado o impossível…
Sendo que ainda ontem nos amamos, ali junto ao vale
Depois do pinheiro hirto, mesmo antes da curva…
Lembras-te?… ou teríamos apenas sonhado de mão dada…

Alberto Cuddel
14/07/2021
09:15
Alma nova, poema esquecido – X

Imperfeição humana!…

Imperfeição humana!…

há nessa imperfeição humana
uma raiva incontida de ser duna
manobrada pelo vento como tendência
de ser vítima chorosa do sistema
como cana agitada pela brisa…

no caminho vistoso do campo
correm as nuvens carregadas
lágrimas caídas e choradas
de uma vida dorida e sem tempo

nessa imperfeição humana que é viver
clareiras de luz que nos habitam a alma
há esse mar de incerteza que nos acomoda
mas que nos cativa perfume de rosa…
lutam os reclusos por um beijo
conquista firmada da fertilidade
um luar, uma viagem às estrelas…
ó imperfeita capacidade humana
guerreira por um orgasmo…
entre o prazer de acordar
e um orgulho ferido…
o macho imperfeito prefere matar…

advenha-nos o deserto,
a fome do incerto e a partilha…
entre a água à mingua
e um madeiro que nos entalha os dentes…
é na carência que a imperfeição humana se esbate…
ou se unem e vencem… ou morrem matando…

Alberto Cuddel
13/07/2021
10:41
Alma nova, poema esquecido – IX

Às vezes em conversas comigo mesmo

Às vezes em conversas comigo mesmo

quantas vezes eu mesmo, que rio de tais seduções da distracção,
me encontro supondo que seria bom ser uma celebridade,
que seria agradável ser paparicado, que seria colorido ser magistral
mas não consigo visionar-me nesses papéis de píncaro
senão com uma gargalhada do outro que eu imagino sempre próximo…

assim sou eu… que me aplaudo mentalmente nos versos do romantismo
mas que me escondo por detrás das vidraças da gramática,
que evito olhar no espelho esta figura ridícula e anafada
mas que olha o mundo lá fora com uma timidez colossal
um dia escreverei o poema perfeito, o livro prefeito
desses que irão estar por dezenas de anos nas prateleiras
de enormes bibliotecas, que causarão espanto
quando o seu proprietário pronuncia o seu nome…
um dia escreverei esse livro, mas terá apenas título…
não, não quero que o meu nome o conspurque, que o diminua
será apenas livro, sem poeta…

depois olho à volta, e vejo… e levanto-me apenas para sentar de novo
e escrevo…
[escrevo… estupidamente…]
invento novas realidades por palavras conhecidas,
às vezes chove lá lora, mas invento dias de sol, e praias vazias
passeio sozinho por entre a multidão da cidade que não me vê
e detenho-me olhando duas tias que sentadas numa esplanada vazia tomam chá
invento as suas histórias, tão reais…
as suas vidas pecaminosas de luxuria carregadas de amores e amantes…
desses que se esgueiram pela porta dos fundos…

despois chego cansado do passeio… eu que nunca me levantei…
mas inventei o mundo… esse onde tantas vezes vivo…
se queria ser uma celebridade? como posso querer ser?
o que realmente sou em mim…

Alberto Cuddel
23/06/2021
19:00
Alma nova, poema esquecido – VIII

De quem sou, para onde vou…

De quem sou, para onde vou…

que vos importa quem sou, quem fui
de onde vim, onde estou, para onde vou…

se meramente quero ser árvore
não quero ir a lugar algum
sair de onde estou, partir
quero apenas estar, talvez seja isso
estar…

que venham as estações e os pássaros
que me caiam as folhas, que me colham as nozes
que me perfurem as entranhas
que venham os esquilos, os insectos
eu estou aqui, e aqui sei quem sou…

quem venham os fogos,
que me queimem as cascas
eu viverei noutro lugar…
sim quero ser árvore e estar…
ou meramente raiz, ou pedra
ser desgastada pelo tempo…
mas quero estar…

cansa-me mormente o ser
e essa vontade férrea de viver
de ser melhor, de mudar…
eu não quero mudar…
quero estar, será assim tão difícil?
apenas existir… apenas esperar?
Porque o tempo vem, quando tem de vir
Sem questões, sem dúvidas…
Apenas por que é o seu tempo…

Alberto Cuddel
23/06/2021
18:00
Alma nova, poema esquecido – VII

Desse purgatório fazemos o nosso paraíso

Desse purgatório fazemos o nosso paraíso

mil vezes morri, prostrado…
mil vezes ressuscitei
por uma dor mais vibrante
uma ausência confirmada
imposta contraria vontade
e um prazer mais torturado.

enquanto os olhos se esbugalham
numa imagem distorcida na memória
as doces curvas do teu corpo se contorcem
todo eu aqueço na longínqua distância
o nosso olhar pousado no horizonte
no desespero desse abraço mudo,
confessam-se diante de tudo
e por nada é o perdão concedido…

espelha-se no azul mar preso no teu olhar,
nas ondulações errantes do amor iluminado,
nudez do teu pensamento, sentir sagrado,
rubescidas em vagas de mar atrevido, amar!

tinjo de amor palavras,
que hoje desenho nos gestos
impregnando de doce perfume,
rosas que te nascem das mãos,
arrufos gravados nas areias do tempo,
lavados pelas marés, tolerante amor!

E depois, quando as noites nos chegam
Brincamos com as sombras dos nossos corpos
Iluminados pelos pirilampos do desejo…
Tudo por nada, tudo se inicia no beijo…
Diante do purgatório dos dias
Reinventamos o paraíso, ali diante de nós…

Alberto Cuddel
19/06/2021
20:00
Alma nova, poema esquecido – VI

Alma rasgada pelos espinhos da vida

Alma rasgada pelos espinhos da vida

cravei a fogo em lapide inclusa
rip, aqui jaz um poeta sem versos…

esperei como quem espera o tempo que basta
como se o amanhã fosse agora e já não houvesse segredos
as árvores agitavam-se adivinhando o futuro
e partiam as andorinhas… as cegonhas, ai as cegonhas
e as garças e os patos… todos partiam…
e eu? e tu… ficamos ali, indiferentes ao passado que mudou
a um presente que não existe, a um futuro perdido…

e calaram-se os versos…
teceram uma coroa com os silêncios
e coroaram-no de espinhos…
as palavras trespassavam-lhe a carne
as metáforas, queimavam-lhe a pele
e as ironias e hipérboles secavam-lhe a garganta…
pelas três da tarde, chegaram-lhe à boca um poema,
a custo declamou um verso e expirou…

a biblioteca adormeceu, rasgada ao meio
entre a dor da perda, e a certeza de viver nela tudo o que sobra…
a palavra ressuscitou o poeta…

Alberto Cuddel
11/06/2021
03:00
Alma nova, poema esquecido – III

Há essa voz de eco que o tempo esquece…

Há essa voz de eco que o tempo esquece…

eco do tempo que se faz voz em majericos
vão da porta da igreja e a voz dos mexericos…

arrastas pelo chão o nome de mulher
invenção de um leito, uma noite qualquer
dizes-te voz da consciência,
bates no peito em obediência
mas és meramente invejosa da vida alheia…
que as almas do purgatório te perdoem
e todas as outras que escorregaram na vida
solteiras, à força de trabalho criaram uma filha…

há essa voz de eco que o tempo esquece
mas que o povo sábio enaltece, na letra de um fado
antes que a vida te leve, pelos bairros de alfama
és força vida entre o tejo e o sado…
amada por tantos os que te deitaram na cama…

ó mulher, doce mulher… onde te mora a liberdade?
na inveja de muitas, as que te escarnecem na rua
pura inveja de vida, por a sua sorte não ser a tua!…

Alberto Cuddel
07/06/2021
Alma nova, poema esquecido – I

Esta dor de amanhecer longinquamente…

Esta dor de amanhecer longinquamente…

Aqui, bem aqui, amanhece devagarinho
Rangem os troncos pelo sol a romper
Cheiro de urze, resina e algum pinho
Humedece esse orvalho de amanhecer…

Assim é todos os dias,
Tão vividos em surdina, tão cheios de esperanças
Fazendo de tudo arte, nas pétalas que se arrancam à consciência,
Tudo é limpo, puro como ribeiro de degelo…
Quadros férteis, não de figuras femininas imaculadas
Mas de mulher, de terra mãe e aconchego
De abraço reconfortante…

Na alma ressoa uma orquestra oculta, sons naturais
Essa voz que me chama, entre raios que me entram pela janela
Um apelo estomacal de café quente…
Brincam as borboletas irreais pelo excesso de luz…

O tédio da solidão em leito vazio,
Ainda que me arda o peito em saudade,
Quem tem, não perde, encontra…
Mesmo que creia, até a dúvida é impossível
Nesta impossibilidade real de ser hoje…

Mas o sol nasce, ergue-se
(vagarosamente)
Entre o cheiro de urze, resina e algum pinho
Pelo que é naturalmente natural
Num caminho verdadeiro de ser
Apenas perfume de um corpo ausente…

Alberto Cuddel
07/02/2019
17:30

Que longe esse perto que me aperta…

Que longe esse perto que me aperta…

Fogo que arde longínquo
Nos passos em estrada estreita
Espreita-me a dor do sorriso
Conhecido destino dos deuses gerados…

Arrastam-me a alma e o corpo pelos dias
Como um sacrifício castrador do sentir
Ferve-me silenciosamente o sangue
Nesta volátil vontade de existir, onde?

Há gavotas e pássaros em terra
Tempestades que escorrem nos dedos
Há trevas e dores, segredos e amores
Há palavras feridas de morte, e há a sorte
Essa que compassadamente morre…

Há abraços e palavras quentes
Vontade de ser vivo, de estar gente
Há certezas gravadas do peito
E alma que queima, que sente…

E desse perto que se fez longe
E desse tão longe que é perto
Uma inspiração que transpira
Um fado negro escrito a magenta
Em mãos dormentes que pendem!

Alberto Cuddel
05/02/2019
17:40

A corrupção de um abraço vazio ou a falta de um beijo

A corrupção de um abraço vazio ou a falta de um beijo

Sejam os abraços cruzamentos
Batimentos musculares que se complementam
Sejam peitos abertos à corrupção da palavra
Apertem-se pela erosão do vento
Brisas da revolta em pensamento fechado…

Gravem-se em pedra as pegadas dadas
Em passos no mesmo sentido
Movam-se as areias e as folhas
Sequem as almas chorosas no beijo
Partam de mão dada – vida…

Humedeçam os lábios
Profiram construções
Enlaces, uniões
Cravem os dentes na discórdia
Abracem a maré que nos arrasta…

Olhem o horizonte
Procurem-se lá…
Não no asfalto negro atrás de vós
Não nas pegadas na areia
Não na solidão de um abraço vazio
Mas lá, lá longe onde desejam estar…
Na corrupção do passado
Apenas vive água e cloreto de sódio
Um rosto triste e um corpo vazio e amargurado…
As árvores morrem de pé, por não poderem partir…

Alberto Cuddel
24/01/2019
17:55

Neste revolto ser, registo com apreço a vida…

Neste revolto ser, registo com apreço a vida…

Rasgo ao meio os ecos dos silêncios
(manchados de raiva em alcofas de linho)
Hoje brindam à derrota do querer, o amor definha
Vil metal este que eleva o ego aos píncaros do olimpo?
Falso, é falso, sempre foi falsa a máscara que vestes
Carregas nas vestes arrematadas o vil sabor acre do pecado…

Que poeticamente morram de pé as arvores que não se movem
– Ofereço o peito as balas, hipérboles gastas
Contas, e recontas em segredo, mentiras repetidas da verdade,
Ensaios bucólicos da vida que querias, queres não sabias…

Eu, mil vezes eu e tu, sim tu
Tu que me fitas, tu que me críticas e reprovas
Mas lês-me… lês-me…

Fartas sejam as clareiras dos dias
As frondosas florestas, os montes verdes
As arestas vivas das rochas, as gravuras do tempo
A honra do homem arrastada pelo pecado do convento
Batem borboletas no peito
Como gaivotas que pairam no vento
Jorram cores da mão do poeta
E palavras do pincel do pintor
Esculpindo vestes belas e brancas
Em pedras cosidas pelo alfaiate.

Abraças-me pecaminosamente no desejo sem tempo
Escorrem dos lábios mel, nessa solidão da leitura
Um aperto de pernas, um arrepio na espinha
Uma mão no cabelo, um sopro na nuca…
Das palavras soltas, resulta uma brisa que te trespassa a janela aberta
A alma…
Neste revolto ser, registo com apreço a vida…
Esta que vive a cada vez que fecho o caderno
Erguendo-me e caminhando em direcção ao amanhã que me espera
Ali diante de mim numa mão estendia…

Alberto Cuddel
23/01/2019
13:30

Que me queimem as folhas e as certezas…

Que me queimem as folhas e as certezas…

Nestas incertas gravuras que calcorreiam no tempo
caminhos vazios em estepes quentes
farpados sejam os pés em atalhos do ego
rasgadas as certezas da fé, que morra eu de pé…

Mar de folhas vazias chamam por mim

degolam-me as rimas, asfixiam-me as metáforas.
inquietam-me as palavras e os sonhos
neste abraço gramatical que hiperboliza o desejo
que morram as certezas de quem sou
creio fielmente que serei outro amanhã…

Hoje morro, morro como quem ressuscita
numa maré vazia em que a vida explode
ali junto as areias do tempo que secam ao sol…

(não me leias, não me creias)
Morro a cada verso sem exemplo do que fui…
A poética é vida, a palavra morre se não lida…

Alberto Cuddel
22/01/2019
10:38

Macabros intentos…

Macabros intentos…

De punho erguido ao vento
que duro e vão intento democrata
impor verdade pela força da palavra…

        Denunciem senhores
        denunciem senhoras
        encontrem alternativas
        esvaziem as mãos, os bolsos e façam acontecer…

De punho erguido ao teclado
teclando exaltado
assim vive o povo
reclamado na sombra do seu poder…

        Desfilem…
        manifestam-se meia dúzia
        de canário vestidos,
        pio, pio, nem um pio…

Mas votam,
votam como quem vota sem olhar
sem ouvir e sem falar,
votam na confiança que outros escolhem
pela falta de coragem…

        Macabros intentos
        este do voto na abstenção
        não há alternativas 
        mas ninguém trabalha pela força da razão…

Alberto Cuddel
21/01/2019
19:09

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