Reedificação – A reconstrução do eu

Reedificação – A reconstrução do eu

Quando a determinado ponto da nossa vida encetamos o projecto de reconstruir uma casa em ruínas, o primeiro passo a dar e libertar a construção de todas as portas e janelas, abrir o seu interior à luz. Depois retirar do seu interior todos os escombros, todo o lixo acumulado, limpar as paredes, o chão, retirar o telhado, verificar a firmeza e solidez das paredes. Se por acaso lhe quisermos acrescentar um piso, ou mesmo apenas aumentar a altura, ou colocar apenas uma placa de betão, devemos também fortalecer as fundações, refirmar e fortalecer as paredes. Só depois de tudo isto iniciamos com segurança a reedificação, o restauro e tronamos aquelas ruinas num lar…

O mesmo acontece nas relações humanas, não devemos reconstruir, reedificar, restaurar, ou mesmo mudar uma relação, sem antes limparmos, removermos o lixo anterior, não devemos iniciar uma nova relação, sem abrir o interior à luz, sem fortalecermos as fundações, sem confirmar que não há falhas nas paredes, se a nossa estrutura está apta a receber um “novo piso”, caso contrario mais dias menos dia tudo irá voltar a ruir, deque vale uma pequena limpeza às paredes exteriores, um remendar e uma repintura? Se o que importa verdadeiramente é o seu interior, pois é lá que passarão a maior parte do tempo.

Lembram-se daquela frase “ o que importa é a beleza interior!”, porque será que ela tem tanto valor? No final da sua vida, não importa o quão as paredes estão gastas, com o desgaste da tinta, com as ervas do jardim, com a piscina onde tantas vezes foi feliz, no final da sua vida o que importa é o conforto do seu interior, a sua comodidade, a sua facilidade de movimentação, no final da sua vida o que importa é uma boa conversa, as recordações, as memórias, o poder calmante ver um filme lado a lado…

Reconstrua-se para o resto da sua vida, e não apenas porque não tem onde morar, não apenas porque esta sozinho, não apenas porque quer “esquecer” o lar anterior, reconstrua-se a si primeiro, tire tudo o que o impede de ter paz, de oferecer paz, tudo o que o impede de iniciar um novo projecto com segurança, ofereça segurança e não um “vamos der se dá”…

“Eu só posso oferecer o que sou, nada mais do que o que sou, se sou ruinas, oferecerei ruinas, se pelo contrário me reedifiquei, se restaurei as minhas paredes, oferece-me totalmente apto a ser novo, apto a receber no interior e a partilhar!”

António Alberto Teixeira de Sousa
01/11/2022

Já me perdi…

Já me perdi…

Já me perdi em desvaneios poéticos,
Num ou noutro universo,
Na estrutura rígida de um verso,
No luar de uma lagoa,
No sol quente na areia,
No mar batendo na proa,
No calor de um a lareira!…

Já me perdi…
Nas cores dançantes de um jardim,
Na firme vontade de calar um sim,
Nas trovas ridículas de escrever o amor,
No desenho colorido e vagaroso do sol por,
Na saudade sentida em noite escura,
Na dor absurda da ausência pura,
No teu corpo desejo provocado,
Despido de tudo num beijo molhado!…

Já me perdi…
Escrevendo coisas sem nexo,
Poema delirante e complexo,
Já me perdi…
Para me encontrar,
E sem delirar, saber porquê escrevo,
Que do nada assim me ergo,
Podendo aos ventos gritar,
Que apenas escrevo por amar!…

Alberto Cuddel
22/07/2015

Essa insegurança crua da existência humana

Essa insegurança crua da existência humana

“não trago o sol nem a lua na algibeira.
não quero conquistar mundos porque dormi mal,
nem almoçar a terra por causa do estômago.”*
tão pouco erguer-me por aí com as dores nas costas…
os pinheiros altos dormem ali sob as nuvens
as galinhas ainda hoje beberão de pé…

sob a terra quente debaixo dos pés
o ruido metálico da imaginação dos homens
pouca terra, pouca terra, e o mar cruzado por cargueiros…
nesse capitalismo feroz da existência humana
nesse ter que impera sobre a nossa realidade do ser

onde te mora esse desejo de caminhar a par?
se a na tua prepotência exiges apenas chegar…

há em mim esse desejo absurdamente romântico de fazer existir o teu sonho
onde as flores são apenas flores e as arvores de fruto apenas arvores
e delas nos alimentamos,
essa ideia que perseguimos
de uma cabana e um sonho de amor…
e sob a lua e as estrelas fodemos, como profecia mater do sonho do homem
um amor na mão e uma cabana sob as cabeças
e existimos ali…

realidade que não tem desejos nem esperanças,
mas músculos e a maneira certa e pessoal de os usar,
e tudo é por nós possível… e o amor faz-se, faz-nos…
porque na impossibilidade cósmica de o ver, limitamo-nos a sentir a sua existência
em tudo o que foi divinamente criado…

essa insegurança crua da existência humana
torna-se palpável, sofrível, no calor dos teus seios
e ficamos ali, tão perfeitamente reais, olhando as estrelas…

Alberto Sousa
04/08/2022
In: Poemas de nada que se perdem na calçada

*Alberto Caeiro

Escândalo!

Escândalo!

Escandalizam-te os seios desnudos que alimentam o filho do homem
Mas não te escandalizam os filhos dele abandonados na rua…
Escandalizam-te as notícias de idosos encontrados mortos há meses…
Mas não se escandalizam por os vizinhos do lado nada saberem…
Escandalizam-te as crianças que ficam sozinhas em casa…
Mas não se escandalizam cada vez que uma instituição quer contratar e não querem trabalhar até tarde…
Escandaliza-te um touro sangrando na praça para glória de quem pagou…
Mas não te escandaliza uma criança ao colo de uma mãe suja mordendo de fome…
Escandalizam-te as notícias de mulheres e homens mortos as mãos dos companheiros
Mas não te escandalizam os maus tratos que escutas no teu prédio, na casa ao lado…
Escandaliza-te os massacres criados por uma sociedade que tolera as armas
Mas não te escandaliza que o teu filho possa ir para o exército matar…
Escandaliza-te o roubo dos políticos quando estão no poder
Mas não te escandaliza a fuga ao fisco nas feiras, oficinas, obras em casa…
Escandalizam-se por nada…
Mas toleram o tudo…

poeticamortem
Suicídio poético
06/06/2022

Reflexão porque eles também pensam e sentem…

Reflexão porque eles também pensam e sentem…

Sobre a agressão perpetrada por Will Smith.

Sobre tal começo por dizer que sou totalmente contra qualquer tipo de violência. Sobre o que aconteceu o que mais me escandaliza é ver, mulheres e mãe apoiar tal “explosão” de testosterona de um macho ferido no seu orgulho, porque alguém “insultou” através do humor o seu património, a sua fêmea. Existirem seres humanos que apoiam essa violência é para mim repugnante, e explico porque, validar esta violência é validar toda a violência quando o orgulho do macho é ofendido, é validar a violência doméstica, é dar ordem de ataque aos filhos, aos jovens, porque vão defender a sua honra ou das suas posses…

Em segundo lugar, já repararam que todo o humor é ofensivo e ou rebaixamento de caracter ou inteligência de alguém? Assim sendo é então todo o humor é um insulto. Por exemplo, alguém cai na rua, e as pessoas riem… esta essa pessoa autorizada a ser violenta com quem riu, porque o riso a ofende? Uma piada sobre os carecas, devem os carecas serem violentos por isso, devem sentir-se ofendidos?

O insulto não parte da boca de quem o emite, pois quem o emitiu não cometeu nenhuma inverdade… o insulto é sentido e aceite pelo Will Smith, por um ego doente. Ele se sentiu ofendido, porque ela é dele, e está revoltado por a “mulher” dele estar doente.

Validar a atitude de macho que defende a honra da fêmea pela violência é validar a posse. É aceitar que a mulher deixou de ser autónoma como ser humano, que passa a pertencer e a depender desse macho alfa, que a domina…

Nunca a violência tem justificação. E neste caso o que podia ser uma excelente rampa de divulgação para uma doença rara como a doença autoimune, alopecia, que causa a perda total ou parcial do cabelo, após a cerimónia tal hipótese foi completamente arrastada pelo chão por um ego ferido, de macho traído.

Alberto Sousa
29/03/2022

O tédio das coisas simples

O tédio das coisas simples

às vezes quando olho a vida, escondo-me por detrás da sombra
por uma aversão às coisas inertes, que estão ali, porque sim

às vezes, quando ergo a cabeça estonteada dos livros que leio
coisas inventadas e a ausência de vida própria,
sinto uma náusea física, que pode ser de me curvar,
ao erguer os olhos a uma luz falsamente adquirida
mas que transcende os números e realidade…
e vejo-me em viagens ao submundo da existência
ali, onde tudo é real e possível… onde podemos matar
onde podemos fazer nascer, onde nos podemos apaixonar…

a vida desgosta-me como um remédio inútil,
e é então que eu sinto com visões claras
como seria fácil o afastamento deste tédio
se eu tivesse a simples força de o querer
de possuir em mim a garra de deveras me afastar

já pensei emigrar para um livro em branco
e construí-lo com palavras novas por inventar
desenhar montanhas submersas de desejo
e rios secos de angústia… quem sabe escrever um massacre global
ou então não escrever nada, e simplesmente permitir-me
sonhar e sentir tudo, como uma primeira vez…
mas depois invade-me essa inercia da acção
esse tédio de olhar o mundo e ficar quieto…
cheio de ideias, mas imóvel…
apenas invadido pelo tédio,
olho, apenas olho, sem falar nada…
uma cadeira tem quatro longas pernas
e as minhas apenas duas doem-me…

Alberto Cuddel
06/10/2021
19:00
Alma nova, poema esquecido – XXXVIII

Eram magras, comparadas com o fermento que salga a vida…

Eram magras, comparadas com o fermento que salga a vida…

magras, tuas mãos alargam-se sobre quem a vida sequestra
ainda que os braços pendam sem forças
sob o jugo do peso da discórdia
erga-se a vontade da vida, partilha do pouco
uma vontade de ser, apenas amanhã…

há na fecundação da palavra essa vontade decrescente
esse parir esdruxulo das ideias rasgadas pelo arame farpado da fuga
– já estive preso mas libertei-me
– já foi militante e solado de uma guerra ignorante onde não pensava…
tudo pelo conforto crasso de uma côdea de pão bafiento
que a morte deixava a cada dia dependurada
na maçaneta da porta que nunca era fechada…

eram magras, comparadas com o fermento que salga a vida…
essas ideias pré concebidas que que a fé não se contesta
como a fezada de uma partida de futebol sem adversário…

onde te morreram as certezas?
plantadas no pinheiral do tempo como forma memorável de uma eternidade…
e mandaram-te plantar tâmaras… e morreste… sem nunca entender o porquê…

a poesia tem exactamente essa serventia:
pensar que serve para pensar, em rigorosamente coisíssima nenhuma…
desde que rime, no ritmo certo, tudo está longe, do que já foi perto…
há ninhos de barro, e jarros de palha…
mandaram-te ir, e tu foste…
porque não conhecias o não e a sua forma de o pensar…

morreu ontem a Primavera, e os frutos cariam maduros,
não porque são livres ou pensam, mas porque assim chegou o seu tempo…
e veio o Verão, e o olhar o céu, de olhos fechados, enquanto tostam ao sol…

Alberto Cuddel
17/04/2021 3:02
In: Entre o escárnio e o bem dizer,
Venha deus e escolha LIII

(sem) Abrigo

Desafios palavras soltas

De : Ruth Collaço  / Ventos Sábios em parceria com João Gomez photography

Tema: Abrigo

(sem) Abrigo

(Des) abrigo-me dessas pedras construídas por uma sociedade hipócrita e egoísta, quem vos convenceu que eu quero viver numa gaiola preso a despesas fixas, com horários fixos a fazer todos os dias coisas que não gosto? E eu é que sou o errado, o que dá mau ambiente à cidade? E as vossas caras fechadas que se cruzam comigo pela manhã, de olhar fixo no chão, sem olhar o céu, sem dizer bom dia, sem apreciar os pássaros e as flores porque em um horário a cumprir, para pagar despesas e impostos que não queriam e não pediram… E o errado sou eu?

Sim eu (sem) abrigo, vivo livre, quantos presidentes me quiseram enjaular, inserir-me no mercado de trabalho, prendam-me em Évora, talvez lá seja mais livre que numa jaula de um prédio qualquer de uma avenida escondida da cidade, pagando o que não quero por uma coisa que não pedi, fazendo o que nunca quis… Eu, eu não quero abrigo, as minhas paredes são as pernas, e o meu texto o céu… Vou onde a vontade me levar…

Januário Maria

Foto de : João Gomez photography

Espelho

Espelho

Tocasse eu o reflexo do teu corpo
Na gélida margem da realidade
Fizesse eu tarde do teu leito
Contorcionismo arqueado do teu ser,
Lençóis fumegantemente perfumados,
Perfume do amor em nossos corpos!
Fosses imagem refletida,
Desejo espelhado no sonho
Realidade ansiada, simétrica de ti
Toque na alma sedenta, ávida
Do querer possuir em ti
A fonte do prazer supremo
Realização do amor
Platonicamente sentido
Refletido
Habitante do meu ser
Embriagues das noites solitárias
Saudade arrepiante da minha pele
Sinto-te em mim,
A cada momento
Meu olhar toca o infinito
Mundo que habita o meu corpo
Elevando o meu querer!

Alberto Cuddel®

31/05/2016

Poética II

Poética II

Somos as minúsculas letras de um livro, que juntos nos fazemos poema!
quando chegamos, a sensação do privilégio
somos mais altos, de toda a nossa estatura
apenas porque fomos, tínhamos esse destino
tudo estava destinado a ser certo, concreto
há galáxias dentro do peito, mas as estrelas?
sempre brilharam não com hidrogénio ou hélio
mas pelo oxigénio dos teus beijos, pelo amor…

eis-me aqui confiante diante deste lago esverdeado
barco sem velas, mas de leme fixo
[não chove,]
sem lágrimas a saudade suicida-se a cada olhar
nesse abraço elevado a cada chegada, e beijas-me
[enquanto o comboio avança]
há essa incógnita que nos arranca do peito sorriso
enquanto as árvores se agitam na montanha
e as nuvens brindam o nosso encontro
os rostos beijam-se, e mãos dadas olhamos a distância…

sabes Maria, possuis em ti todas as consoantes, os sinais ortográficos…
em mim apenas as vogais, pontos de exclamações e finais…
ainda sim sei que te faço sorrir, enquanto tento contar enxames de abelhas
ou aqueles bandos de pardais inquietos…

deita-te comigo…
pelo menos hoje enquanto olhamos o céu…
olhemos juntos os amores prefeitos a abriram antes de ontem
e as tulipas… matemos a saudade… que ela morra eternamente…

nós que somos as minúsculas letras de um livro,
que juntos nos fazemos poema, também somos vida em galáxias de amor…

[que a liberdade nunca nos seja roubada,
para podermos juntos olhar o nada!]

Alberto Cuddel
27/02/2021 13:56
In: Entre o escárnio e o bem dizer,
Venha deus e escolha XXXVI

Porque a verdade não o é…

Porque a verdade não o é…

não, a verdade não é exacta
a terra já foi plana, quadrada
circular e redonda,
a própria água nem sempre molha
nem sempre dois e dois são quatro
dois seios e dois testículos quando muito será um casal
nascemos na inverdade inventada, bebés trazidos por cegonhas
um velho vestido de vermelho que nos premeia o bom comportamento
que Adão não conhecia Eva até comer a maçã…
que depois do hoje só há o amanhã…
tentas as verdades que não o são…
e os pais? que só por amor concebem, e que o prazer do corpo é pecado…
porquê a verdade não o é?

porque a verdade não vem dos sentidos?
deixem viajar o instinto do querer conhecer e saber
que o nosso íntimo experiencie o orgasmo de descobrir
de se descobrir na mentira que te incutiram… porque as coisas são…

“a liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
a liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
como o luar quando as nuvens abrem
a grande liberdade cristã da minha infância que rezava
estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim…” *

nessa amálgama da crença
apenas o livre pensamento condicionado pela infância
me rasga o céu e as vestes procurando o teu orgasmo nos dedos…
onde se insere a mentira das marés, que força lunar me trepa pelo corpo
que medo é esse que cobre de verde as dunas fustigadas pelo vento?
em que bíblia humana querem que eu creia fielmente?
Freud? e na viagem pela psicanálise do cérebro humano?
despe-te no corpo e na alma,
hoje precisamos falar,
e registar a nossa verdade no silêncio dos lábios…

Alberto Cuddel
23/01/2021 22:30
In: Entre o escárnio e o bem dizer,
Venha deus e escolha XVII

*Álvaro de Campos – A liberdade, sim, a liberdade!

A inconstante habilidade para coisa nenhuma

A inconstante habilidade para coisa nenhuma

Temo que o erro não seja uma inaptidão para a assertividade
Mas uma constante desconcentração visual pela a exactidão do pensamento…

Criticamente escrevo mais lentamente do que a velocidade do pensamento
E voam os dedos no teclado minúsculo, ou no desenho artístico das letras
Nessa inadaptação ao querer que seja já sendo o que foi
Penso que pensar não seja arte, mas uma ferramenta técnica de vida
Pensar é num acto simples estar vivo…
Sendo a poética a arte da inutilidade linguística
O deslumbramento frásico sobre a beleza da curvatura das vogais
Em pleno acto isolado de voar no céu da boca
Assim são as opiniões estabelecidas
E o mundo, à falta de verdades, está cheio de opiniões.
Como estão cheias de árvores as florestas ou deixaram de o ser.

Ser poeta é:
Ter a arte e o engenho de perder tempo, nesse tempo que não tem
Enquanto rodeado de ninguém observa um pássaro que nada num céu sem estrelas
Enquanto Santo António prega sem martelo sermões às sardinhas
Que num acto de misericórdia divina
Foram condenadas por bruxaria à expiação dos pecados pelo fogo…
Ser poeta é amar todo o universo contido numa gota de água que cai
E encontrar num lago a gota de chuva perdida…
“É amar assim perdidamente” todo o mundo e toda a gente
É olhar a alma por dentro e descobrir que não tem cor
Nem raça ou credo… e que os deuses se revoltam
Por não terem uma cerveja gelada…

E neste acto glorificado pelos canos das espingardas
Que deram liberdade aos cravos…
Os poetas morrem… enjaulados pelas prateleiras poeirentas da biblioteca…
Sem que as palavras mudas gritem em pleno Rossio…
Há vida para lá da rima… o poeta, fugiu…

Alberto Cuddel
29/12/2020 03:51
In: Entre o escárnio e o bem dizer,
Venha deus e escolha VI

Poética da demência assíncrona…

Poética da demência assíncrona…

há na realidade do pensamento humano,
uma essência flutuante e incerta,
tanto na opinião primária,
como em todas as outras pensadas
longamente na visão platónica do mar
como naquela outra que lhe é oposta,

as hipóteses do pensamento são em si mesmas instáveis
nesse rasgo visionário de um por do sol
ou no rasgo matutino gemido de um parto malformado
em dias de neblina pelo sol que se ergue no horizonte
no olhar não há síntese, pois, nas coisas da certeza,
apenas existe a tese da antítese apenas.

seja a areia do mar, registo flutuante do tempo
do que vai e do que vem, sem ter chegado a ser vidro
na síntese penso que sinto, e no que sinto sei o que finjo
na certeza do que é em mim, é verdadeiramente concreto
no que da minha alma brota, que em meu íntimo sangra…

nem os demónios me aceitam no convívio sádico da expressão
nem as rimas gritadas na dorida alma que orgasmicamente sente
nem no pensar concreto da consciência poética existe síntese
nem nas vogais, nas consoantes, nas orações desenhadas
só os deuses, talvez, poderão sintetizar este sentir atrófico
que finjo ser mentira de tão verdadeiramente sentido
num formigueiro que dolorosamente me percorre os dedos…

este pensar a poética pelo que alegremente se sente
numa consciência pagã do que se pode fingir
sentido que o que se escreve é ingenuamente a verdade da mentira…

Poética da demência assíncrona… ou a consciência da verdade…

Alberto Cuddel
24/12/2020
08:55
Poética da demência assíncrona…

Perdeu-se o mundo na madrugada…

Perdeu-se o mundo na madrugada…

e despiu-se… de alma vestida despiu o corpo
e correm alvoraçadas rua abaixo ainda confinadas
as folhas soltas do Outono douradas pelo tempo
cravam-se desenhos aleatórios na parede, cores garridas…
há uma camisola de malha esquecida e um jornal…

de joelhos ergue os punhos aos céus,
libertando as mãos dos cabelos seus,
lábios abertos e boca cheia, nem um grito
um gemido… engole…

perdeu-se o mundo na madrugada
não há já esperança no acordar
é tudo agora, depois, depois nada…

ouço calado notícias do fado
não há saudade, não há medo
nem desespero, nem amparo
nem conhecido, ou segredo
perdeu-se o mundo na ombreira da porta
mesmo ali, diante da escada…
nesta vida não vales nada… nada…

e os homens? esses esqueceram de acordar…
dormem, como vagabundos abandonados
usados, bem usados… mas sozinhos…
porque elas já não precisam deles…

e caminham sozinhos assobiando satisfeitos
sem conhecerem a solidão que os habita
que os vai corroendo por dentro
como um cancro incurável que os mata…

Alberto Cuddel
09/12/2020
03:10
Poética da demência assíncrona…

Correm as pedras em ribeiros secos

Correm as pedras em ribeiros secos…

-sabes amor onde nos mora o desgosto?
há nos ribeiros secos um anúncio de vida
nuvens trovejadas de saudade e peixes
desses que saltam por entre a corrente
enquanto sobem em direcção à morte…

há verdade na vida
há sonhos da impossibilidade
há sono sem cansaço?

corroem-se os cascos na margem
em mares nunca dantes navegados
em corpo de mulher amaldiçoados
sopram ventos abortivos da saudade…

onde vos moram os beijos?

rasgadas sejam as redes que procura o amor no cântico
ilusões disformes das pedras afiadas…
há nas curvas prazer, desse imediato que se vem…

correm as pedras em ribeiros secos
nas mãos apenas punhados de nada
bolsos vazios e garrafas de água…
do amor nem vestígios, nesta carteira vazia…
há quem procure e encontre amor às prestações
com cartões, promoções…
a prazo…

Alberto Cuddel
05/10/2020
13:55
Poética da demência assíncrona…

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