Vestes que despes contra a parede do tempo…

Vestes que despes contra a parede do tempo…

nas paredes amarelecidas pelo tempo
as vestes que despes de uma alma nua
estendes marcos aos olhares do mundo
condenam-te as vistas que passam
pelas molas podres e o gasto da roupa…

corres pela rua acima, em portas e janelas fechadas
rotos que espreitam por detrás das cortinas
gente com medo da rua, com medo da vida
e estendes ao mundo as línguas de trapos
a bocas imundas de palavras porcas…

estendes ao sol
as vestes que despes contra a parede do tempo
em alma lavada corada ao tempo…
e esperas… que o tempo te seque…
calcorreando o empedrado da rua…
aprisionado entre paredes gastas…

Alberto Cuddel
21/01/2021 15:10
In: Entre o escárnio e o bem dizer,
Venha deus e escolha XVI

Ecos do vento

Ecos do vento

deixei que ecoassem livres os ecos de um vento mascarado
nessa distância mensurável pelo humano olho
um afastamento das boas maneiras perdidas
um bom dia atirado pelo olhar…
puxam-vos as orelhas para a frente…
há na parede caiada um rasgo de alecrim
sorris, mas segues caminho diante dos desempregados
esses que te fitam por detrás das cortinas com medo da morte…

e fecharam as lojas e as caves…
fecharam as hortas e as adegas
não há ecos de talheres nem brindes…
os cafés parcos, não lançam baforadas de fumo
não se dizem poemas, não se discute, não se insultam árbitros…
confinaram-vos a alma, pelo medo da morte…
enquanto eras novo, fugias do sol…
abraçavas corpos, partilhavas copos…
depois infectavas os avós que morriam…
e as tias dos lares, as crianças da escola,
e os enfermeiros médicos, e tudo recomeçava…

agora olhamos o eco do vento que passa
sem que ninguém passe por nós…
e de noite? ninguém…
apenas os desempregados espreitam
os outros que ainda tem trabalho…

e essa merda de medo…
quando as regras de tão simples foram esquecidas…

deixei que ecoassem livres os ecos de um vento mascarado
nessa distância mensurável pelo humano olho
um afastamento das boas maneiras perdidas
um bom dia atirado pelo olhar…
puxam-vos as orelhas para a frente…

Alberto Cuddel
11/11/2020 02:51
In: Entre o escárnio e o bem dizer
Venha deus e escolha III

Esperança desse medo de ficar

Esperança desse medo de ficar

deitou-se no horizonte o medo
asas da alma que te elevam
sem que partas a lugar algum
bosques de silêncio onde te fitam os olhos
ribeiros mansos que correm
por ente avencas que se agitam, uma sombra,
olha comigo o rio, de mão dada
olha, não digas nada, espera a foz, esse desaguar
essa vontade de ser, de estar…

nas escaleiras solitárias
essa esperança,
esse medo de ficar,
o ir, o chegar…
o não for e o não estar…
e o existir ali, mesmo ali, na tua mão
de mão dada, olhando o rio…

Alberto Cuddel
27/01/2020
03:23
In: Nova poesia de um poeta velho

Tremores

Tremores

tremem-me as mãos e o corpo
nessa doideira de me fazer novo
e eu,
e tu e esta escolha que deus impôs
entre a alma e a vida,
entre a fome e a sede
entre estar e o partir
entre o chegar e o ficar
o sorte madrasta das marés
ciclos lunares em contra pé
e a morte essa cura eterna para os males do mundo…

Alberto Cuddel

No tempo em que a saudade não tinha medo

No tempo em que a saudade não tinha medo

Tenho saudade do tempo sem medo
Sem pelo na venta e sem conhecer o prazer
Nesse tempo vivia destemido sem saber
 – Ainda que me morram as noites, irei nascer…

Que corra enjaulado espreitando a vida nas janelas
Nessas árvores queimadas em troncos hirtos
Nos olhos que me fitam sedentos de sangue
Não temo a saudade do que nunca foi meu…

Passam os minutos e carros nas ruas…
Passam barcos no canal, água debaixo da ponte
Trespassam-me o peito as dores
Flechas vermelhas, sem as saber nuas…
(não mato, não morro, apenas fui por outro caminho)

Nessa saudade sem medo, morro pelo teu corpo
Como ferros forjados na fornalha eterna que me trespassam
Entre o suicídio e a morte que chega pela manhã
Neste leito vazio a que te condenei…

Não derrames lágrimas frondosas de um amor sem limite
No tempo em que a saudade não tinha medo
Eu escolhi um outro destino, pelo medo de um ontem sem fim…

Sírio de Andrade
02/11/2018
Lisboa, Portugal

Queda nostálgica da noite, ou a morte…

Queda nostálgica da noite, ou a morte…

Há horas em que apenas morremos
Não há em nós nada, nem dia, nem noite
Um coração cheio de um vazio perpétuo.
Não há visão do teu corpo,
Que me altere este cego destino.

Pálido rosto sem vida, sem sangue,
Que desagúe em noite claras,
Deixa transparecer este semblante
Triste, enfadonhamente branco…
Saibas que mesmo que tentes, 
Não há em mim nenhuma outra forma,
De renascer nas rosas espalhadas pelo leito.

Desprezo-me na ambiguidade do que sou
Em que me entendes, nas pedras espalhadas
Escorregadias do leito da vida,
Não me suportam, mas incitam-me à queda
Perpetuação da noite, nostálgica 
Ao abismo de mim próprio…

Alberto Cuddel

Congrega-me hoje em ti

Congrega-me hoje em ti

Ainda que me disperse
Congrego-me no sentir proclamado
Desejos de um corpo abstinente
Sonhando o tempo que nunca aconteceu
Nem eu, nem meu, nem nosso
Protelamos o querer,
Nas voltas erradas dos dias,
Sem que Plutão seja planeta
Na virtualidade dos encontros
Desencontramo-nos
Onde ainda nos queremos…

Congrega-me
Ainda que me arranques
Dos negros vales em que habito
Luz e brilho do teu corpo
Sem que em mim o tenha sentido….

Hoje em ti
Apenas lágrimas
Do tempo em que o medo
Em ti habitou…

Sírio de Andrade
03/11/2017
00:26

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