Rasgos de lucidez

Rasgos de lucidez

…embarcado nessa viagem sem tempo
onde as horas são a mera desilusão
rasgada por areias estreitas
em peito rude e aberto, o corpo fede
a alma definha, a vida esgota-se…

as árvores morrem de pé, queimadas
a estrada esburacada, não me leva a casa
e a casa ruiu há muito… palavras frias e nuvens altas
acordei… dormia em sonhos, e vejo claramente
este movimento depressivo por onde me arrasto
espero, sem esperar nada que tudo se extinga
onde nem a vontade já sobrevive…

possui-me a alma… o corpo é teu…
no sofrimento com que te carrego
corpo morto açoitado pela corrente
que o espírito me consuma inteiro
que se calem as vozes… eu já não espero…
embarcado nessa espiral sem tempo
onde o purgatório é agora o meu inferno…

Alberto Cuddel
18/09/2021
12:00
Alma nova, poema esquecido – XXXIII

Ruínas

Ruínas


todo eu em ruínas,
sim, vagas e vagas de réplicas,
alma desfeita,
não ficou um sentido,
uma vontade,
que não caísse por terra…
não ficou pedra sobre pedra…
sofrimento atroz que me devora,
que me consome…
não há vontade de me erguer
levantar, mover…
nada de nada…
raiva…
a fúria…
que me faz estar…
apenas estar,
sem movimento
pele dilacerada
carne que se desprega dos ossos
não, não me moverei…
as ideias rodopiam
já fora de mim…
onde, onde caí
sim, ficarei aqui
para onde havia de ir…
se ninguém me procura…

Sírio de Andrade
In: Antologia depressiva (2013)

Nesse acordar de amanhã

Nesse acordar de amanhã

sete palmos no dorso, e um pedaço de terra
entre a esperança no acordar, uma vida vazia
um pedaço de nada, entre a cidade e a serra
um arrepio na espinha, a desilusão da fantasia…

mundo mudo, silêncio mudo —
o ruidoso ronco em que dormes
faz de mim um corpo surdo
rebolando em camas disformes.

vida que me corre nas paredes sombrias
que desliza pelos gélidos lençóis do leito
memória do tempo que em mim sorrias
dor da solidão que carrego no meu peito!

sete palmos no dorso, e um pedaço de terra
uma esperança perdida, sombra no torso
essa voz que ecoa, na consciência adormecida
numa mão estendia, uma vontade que voa…

entre a esperança no acordar, uma vida vazia
num cérebro tolhido, escondem-se as rimas
palavras que mergulham numa total anarquia
nessas arvores azuis que crescem anonimas…

um pedaço de nada, entre a cidade e a serra
as mãos sujas de terra, lágrima escorre finada
e se acordar amanhã, não viverei aqui sozinho
neste mundo ninho, orvalho da doce manhã…

um arrepio na espinha, a desilusão da fantasia…
a certeza consciente de que morri em vida
antes que parta deste da aspereza deste inferno
abrindo o peito, expondo escancarando o esterno…

sete palmos no dorso, e um pedaço de terra
entre a esperança no acordar, uma vida vazia
um pedaço de nada, entre a cidade e a serra
um arrepio na espinha, a desilusão da fantasia…

um coração que morreu… abraçado no silêncio…
que se faz vida nesses pinheiros altos
enquanto ainda ardem as serras…

Alberto Cuddel
10/05/2021
15:40
In: Entre o escárnio e o bem dizer,
Venha deus e escolha LX

Esse ventre esquelético que me pensou…

Esse ventre esquelético que me pensou…

nascem as nuvens rasas a oeste
nessa poeira continental que me invade
sou a cor do tempo que me fez
eu que fugi do homem e povoei o inóspito
eu que me fingi crente que inventei deuses
– que rasguei cânons pela promessa de lucro
quantas vezes idolatrei esse ventre esquelético que me pensou?
arte ilusória de brincar com o pensamento enganando as palavras…

de que me valem os pactos com o inimigo, se negoceio com deus
a paz com o diabo…

pudesse eu aniquilar-me no desejo de deixar de existir,
dar corpo à antimatéria que me corroí as entranhas.
pudesse eu imobilizar-me no desejo apenas de estar quieto,
até que o coração abrandando o ritmo, parasse nas batidas sincronizadas.

pusesse eu tornar-me folha em branco
onde coubessem todas as ideias do mundo,
para que o pensamento se desligasse

depois de tudo isto nasceria, não pela arte aleatória da fecundação
mas pela matemática do pensamento fecundo…

depois de nascer, seria poeta, desses que escrevem poemas perfeitos
com métricas perfeitas e rimas sonoras, ricas claro,
que rimas pobres não fazem história…
escreveria sobre o sol, pois o sol existe…
mas escreveria apenas de dia
porque aqui, aqui de noite o sol não brilha…

nascem as nuvens rasas a oeste
nessa poeira continental que me invade
sou a cor do tempo que me fez
um poema no deserto que agita as canas…

Alberto Cuddel
20/04/2021 01:55
In: Entre o escárnio e o bem dizer,
Venha deus e escolha LV

Textos dispersos

Textos dispersos

Caem as noites em mim, as nuvens que rondam lá fora tolhem-me os sonhos, os gritos pensados e sonhados mesclam-se entre a minha solidão e a multidão que me habita, sonho o branco, a luz, no negro que me ladeia, na cadeira, na candeia que se agita na brisa que me entra pelas portas não calafetadas. O luar, a visão e memória desse ser noturno que me incendeia, povoa a mente, que me desmente, nos mitos e desejos contidos de ferocidade, ferve-me o sangue, treme-me o corpo, não no feitiço da lua, mas na imagem de teu corpo distante e longínquo no passado. Não me entristeço no pensamento de um passado, mas na ausência de pensar em mim um futuro, na incerteza de existir em mim um presente, e lá fora, bem fora de mim uma certeza, o vento sopra, sinto-o, ouço-o, vejo a sua força e atos, e incomoda-me, nem que seja pelos ramos da laranjeira que se precipitam contra a vidraça da janela do meu horrível quarto, conspurcado pela minha mera presença. A noite, onde se agitam sombras, abarca meio mundo no desespero, na doce esperança, que nada é efectivamente permanente, hoje doem-me as noites, onde ontem sorriam as palavra que ecoavam nas paredes deste leito, hoje vazio de ti. Caio no silêncio do meu sonho, amanhã, amanhã o sol ira nascer, acalento em mim essa doce esperança, hoje não, amanhã, as flores voltaram a sorrir!

Sírio de Andrade
22-05-2016

Vampira do meu querer…

Vampira do meu querer…

Pudesse eu calar esta fome em mim,
Atingisse eu o apogeu celibatário de ti
Extinguiria o fogo que me consome
Sangue bombeado, ânsia disforme
Pensamento tolhido, corpo de mulher
Libidinoso sonho erótico, ser em ti
Consumir-me nos loucos movimentos
Escravo do teu ávido e sedento prazer
Sossega-me, deixa-me repousar
Lenções escarlates, húmidos e quentes
Deixa-me repousar no conforto do teu seio
Reconforto de me saberes teu
Sempre, e só, servo dos teu desejos!

Sírio de Andrade

Nesse olhar temeroso

Nesse olhar temeroso

olho-te, olho-te
nesse olhar temeroso
nesse medo do adormecer
saudades de uma vida plena

rasga-se-me a alma cheia
nesse olhar que irei perder
nesses olhos que não me reconhecem
nesse olhar de medo de criança
e é tão fácil arrancar-te um sorriso
tão fácil chorar, tenho medo
não por ti
mas pelo vazia que iras deixar…

olho-te, olho-te
vejo-te criança assutada
com medo de tudo e de nada
por já não saberes quem sou
pelo alheamento que tens da morte

embalsamo na alma rosas negras
laminas que me cortam as palavras
e sorrio, perante as lagrimas retalhadas
e esse olhar temeroso que me ira deixar…

Alberto Cuddel
30/08/2020
23:13
Poética da demência assíncrona…

Sinto-me às vezes tocado, como um pronuncio de morte…

Sinto-me às vezes tocado, como um pronuncio de morte…

sinto-me às vezes tocado, como um pronuncio de morte…
como se a vida acabasse ali, debaixo do chão
depois de tudo e antes do amanhã,
e como se tudo o que tenho feito, pensado,
sonhado, imaginado, querido, não valesse nada…

talvez seja uma doença amar assim tão desconcertadamente
amar como homem, com os genitais…
talvez seja quente ou frio, mas não si o sabor da morte ou do seu beijo
não sei se ela me abraçará, sei que virá o silêncio…

é difícil descrever o que se sente, quando realmente se sente
é tão mais fácil e cómodo descrever o que se finge
não sei quais serão as palavras humanas as que usarei
sê é que usarei algumas para dar voz ao que sinto…
não sei se estou ou sou doente, mas habita-me um sarcasmo na vida
um desalento que ultrapassa os limites da minha individualidade
impondo limites colectivos a coisas que apenas são minhas
que morrerão em mim sem que as grite…

porém sou um homem normal, com normais doenças
– será à morte apenas um sono do qual não se acorde?
[será que sonhamos mortos?]
Há momentos em que cada pormenor vulgar tem toda a importância
Apenas pela sua vulgaridade, e pela singularidade da sua ocorrência
(como um beijo antes de ser dado, na desistência de o dar)
Fica a penas o desejo de o receber…

sinto-me às vezes tocado, como um pronuncio de morte…
como se a vida acabasse ali, debaixo do chão
depois de tudo e antes do amanhã,
e como se tudo o que tenho feito, pensado,
sonhado, imaginado, querido, não valesse nada…
em que as paredes do meu reles quarto se fechassem sobre mim
e me absorvessem como matéria, e eu fosse apenas pó…
sem memória da existência do abraço que ficou por dar…

Alberto Cuddel
30/07/2020
00:50

Poética da demência assíncrona…

Afloramento do sentir, mãos que suportam…

Afloramento do sentir, mãos que suportam…

Cravam-se no peito sombras apunhaladas, sangue que jorra
Dor arrastada pelo corvo da alma, um voo rasante em estrada aberta
Revolvo em voltas infinitas, roucos lençóis clamando o espírito
Sono moribundo do abandono solidão profusa,
Corpo inerte no brado do teu nome, arde em desejo, crente e suicida,
Sofre, cão abandonado sem dono, por não querer suportar o conforto,
Privação de uma trela, uma jaula de porta aberta à vida…
Há uma solidão em cada garrafa vazia, entre um sono e o sonho de não acordar…

Peito sombra de um eco profundo de um não bater
Porque o que trago no peito partiu e deixou apenas o espaço ao sofrimento
E à dor constante que leva esta mente alucinada verter lágrimas em forma de insónia
Pelos lençóis de camas impuras ou cadernos com histórias loucas…
Eu já tive o teu nome à porta de entrada daquele corpo para a alma!
Eu já te tive no final de cada grito de prazer onde o orgasmo era alvorada!
Eu já te tive em cada horizonte por estrada ou céu, mas hoje fecho-me…
E em cada garrafa procuro mais argumentos e explicações para ainda acordar…

Rasgo os dias e as noites nas ruas bafejadas pela memória
Em todo lado a sangue grito pelo teu nome, loucura dos passos sem destino
Na porta fechada ao mundo crente, não há fé que habite esta alma
Apenas licor, apenas leigo, apenas ateu dessa vil estrada
A felicidade é a letargia do tempo a que chamam céu
Procuram os olhos o sal… esse que me alimenta num último trago…

A memória passou a ser um saco velho e sem fundo de pensamentos antigos
Com tinta de caneta transformada em mar de lágrimas de um tinteiro inesgotável
Entornado todos os dias e todas as noites em que estás sem corpo
E me habitas o alma num voar descontrolado a caminho de lugar nenhum…
Eu sei que um dia te tive e fui o teu amor e que isso não foi um sonho!
Hoje no pesadelo da tua ausência, coleciono garrafas e acordares de solidão…

Dueto Sírio de Andrade e João Dordio

Noites irritantemente sombrias

Noites irritantemente sombrias

Sem sombra de dúvida
A noite morde a sombra imaginaria
Daquele que se deita ausente da vida…
O luar grita contra a parede branca
Folhas que se agitam vazias,
Limpem-me o olhar…

Alberto Cuddel
3.4.19
In: Dor da salinidade do olhar

Asas do querer

Asas do Querer

Devastação da noite,
Gélido terror que te faz tremer,
Asas das trevas te cobrem
Gritas prazer na solidão,
Agrilhoado, preso e ferido,
Por sorte, prazer ou morte!
Penas que te fazem voar,
Palavras gritadas,
Esquecidas, no amordaçar,
À dona de mim que me condenas,
Asas partidas, soltas na cela,
Há fome,
Há sede,
Há vontade de te querer,
Revolta em mim,
Que a lua me prende
Sírio de Andrade®

In: Antologia Depressiva
10/10/2015

Dissolvido

Dissolvido

O coração cheio de vazio contínuo.
Nada que mude o cego destino.
Rosto pálido, semblante caído,
Águas negras infestadas,
Demónios do passado,
Descrenças, desconfianças,
Atolado neste negro propósito,
Sem salvação, sem vontade de sair!

Queda,
Forças, uma a um abandonam o ser,
Vontade, desejo de mergulhar,
Deixar afundar, aguas profundas,
Ausência de luz, palavras, querer,
Lua, noite eterna,
Luar ambulante que me perde,
Que me encontra, despedaçado,
Arremessado continuamente pela corrente,
Há rochas firmes da certeza do orgulho,
Assim me diluo, neste mar que me absorve!

Sendo noite, na desilusão, deste (A)mar!

In: Antologia Depressiva
Sírio de Andrade®

Dissolvido

Dissolvido

O coração cheio de vazio contínuo.
Nada que mude o cego destino.
Rosto pálido, semblante caído,
Águas negras infestadas,
Demónios do passado,
Descrenças, desconfianças,
Atolado neste negro propósito,
Sem salvação, sem vontade de sair!

Queda,
Forças, uma a um abandonam o ser,
Vontade, desejo de mergulhar,
Deixar afundar, aguas profundas,
Ausência de luz, palavras, querer,
Lua, noite eterna,
Luar ambulante que me perde,
Que me encontra, despedaçado,
Arremessado continuamente pela corrente,
Há rochas firmes da certeza do orgulho,
Assim me diluo, neste mar que me absorve!

Sendo noite, na desilusão, deste (A)mar!

Sírio de Andrade®
In: Antologia Depressiva
09/10/2015

Ausência

Ausência

Não, a escuridão não existe,
É apenas ausência de luz!
Não, o frio não existe,
É apenas ausência de calor!

Não, o mal não existe,
É apenas a ausência do bem!
Não, o ódio não existe,
É apenas ausência do bem!
Não, a depressão não existe,
É apenas a ausência de ti,

Assim estou vazio,
Sem que o Teu espaço
Esteja em mim preenchido!

Sírio de Andrade
In: Antologia Depressiva

Confissão

Confissão

Afaste de mim o gosto que eu não gosto
Acredite-me no que ainda não aposto
Encha-me o meu crescente e parco vazio
Noites sós em que de ti me distancio!

Sou apenas metade do que fui, não ligo
na perda do todo afastei de ti o perigo
crente fui eu na abnegação do amor, cego
em mim esconjuro a convicção, eu me renego!

Certezas clamaste que em ti edifico
nunca semelhantes aos actos que prático
fiz-me passar viscerais tormentos
nas palavras, carinhos e outros alentos!

Deixo de mim versos escritos
de paixões, traições, e outros ditos
não espero remissão ou compaixão
na alma sei que não terei redenção!

No inferno onde resido e mantenho
sofrimento do pecado tudo o que tenho
apenas de mim, por amor a ti te peço
na verdade que hoje aqui confesso!

Ai de mim pobre e enganado pecador
prazeres da vida, fiquei com a dor
por narcisista egoísmo vi-me sofrer
a solidão que tenho até morrer!

Sírio de Andrade

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