Desse sonho que se faz noite

Desse sonho que se faz noite

O que na memória trago, trago-o visualmente,
se susceptível é de assim ser trazido.
mesmo no querer evocar em mim
uma qualquer voz,
um perfume qualquer,
uma qualquer memória de um corpo nu…
é visualmente que o faço, porque sou,
tenho consciência de mim mesmo
no espaço e tempo em que existo
em que exististe…

não meço os sonhos pela probabilidade de serem
mas pelo prazer de os sonhar
pelo prazer de os fazer dia e noite
de serem carne cansada e fatigada no leito
os sonhos são a confirmação total
que a realidade da imaginação
executa a verdade da noite fazendo-se vida…

e desse sonho que se faz noite,
nasce o poeta criado no pesadelo de viver…

Alberto Cuddel

Desse medo solto por entre os dedos

Desse medo solto por entre os dedos

peito rasgado a soldo
pela dor de ser paixão
pés que se arrastam pela vida
medo solto de ser partida…

por entre os dedos virgens
escorre o sangue fervente do peito
essa dor gemida que aceito
nos teus seios hirtos origens

areias sem tempo em asas quebradas
penas soltas voando ao vento
panelas areadas, brando lume
água coalhada que não ferve…

medo de ir, de ficar, de fugir
medo de amar, de ser e de estar
medo de amar cegamente
porque cegamente sou
o sonho que de mim faço…

Alberto Cuddel

Cego seja eu dos meus olhos

Cego seja eu dos meus olhos

há qualquer coisa de ti que me pertence
nesse olhar depositado na linha do horizonte
tudo é tão estéril nesse mar que brota
sem que da noite se solte um gemido

agitam-se os ventos perdidos em canas firmes
essa trave dos olhos que não se solta
Tornei a ver-te mãe,
essa forma que gente que me gerou,
que longe me levem as palavras engolidas por deus
que me condene o demo nas tentações que segui
eu que em ti me fiz prazer
pela forma de amor que de mim vivi…

cego seja eu dos meus olhos
esses que a terra há-de comer
pela visão que mantenho do teu corpo
pela sede que mantenho do teu viver…

Alberto Cuddel
19/12/2019

Rosto cinzento como a névoa de leste

Rosto cinzento como a névoa de leste

nas noites que se apartam do dia
amarrada seja a lua em escorpião
pernas imóveis e agulhas que lhe perfuram o dorso
tenacidade persistente do que é e tem de ser
porque assim é desejado no íntimo
força mobilizadora do desejo
ainda que chova copiosamente
cerrados sejam os dentes pela carne que arde…

um nó martelado nas vísceras
esse olhar roubado e distante
algemado pela doença que mói
estampada nos meandros do rosto feminino
granítica desilusão bombardeada nas pálpebras
há uma força de capricórnio que nos mantém de pé
nesse rosto cinzento como a névoa de leste
o sorriso é apenas memoria dos dias de maio
como um pólen invisível que nos faz tossir…

no rosto cansado carregas nas mãos
esse respirar das muralhas pulmonares
que em nós se faz vida
fogo que arde oxigenado pela esperança
músculo sanguinário que não pensa
mas sintomaticamente sente…

Alberto Cuddel
16/12/2019

Era para ser o que foi…

Era para ser o que foi…

“Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.”
José Régio

deste nascimento parido em tempos frios
aconteceu o que haveria de acontecer se fizesse sol
tudo tão natural, tudo tão certo, tudo tão perto…
há nestas fome de palavra uma essência de existir
uma vontade sórdida uma sede que greta a voz
ciprestes arrancados da terra pelo lado oposto
pelas raízes como se engolidos pelo inferno
que me importa o ressentimento romano,
os estábulos, estrelas que caminham ou réis
sentados em camelos de costados doridos,
se é ao pai do menino e a sua tentação que obedeço?

há na busca da palavra certa,
no esmiuçar da consciência filosófica
uma verdade pobre, um trabalho inglório
descobrir que tudo é porque assim está certo
nasci do acaso improvável,
numa das infinitas improbabilidades que se confirmam,
tudo é acaso, apenas regido por esse destino
pela chama da existência…
porque era para ser o que foi, um acaso de sorte
entre a vida do homem ou a sua morte!

Alberto Cuddel

Abraço-te na eutanásia da saudade

Abraço-te na eutanásia da saudade

mata-me a saudade no teu abraço
estreite-se-me a alma entre braços firmes
habita-me com urgência o corpo
mata-me a fome de amar, faz-te em mim…

olha a imensidão das águas, senta-te comigo
espera entre nevoeiros a esperança de me ver chegar
regista na fé a certa virtude de permanecer no peito
neste amor interior que se fez em ti sede de viver.

amar-te-ei nesta virtude que mão dada
nesta cara simples, limpa e erguida,
amar-te-ei hoje, agora, amanhã também
ai onde crepita o tempo, onde se consomem as horas
amar-te-ei na sepultura da saudade,
neste amor sem vaidade
onde a fome se faz carne
onde a sede se faz abraço
onde o tempo não morre e pára
nesse orgasmo fálico,
onde a saudade se faz morta…

Alberto Cuddel

Nessa vontade máxima

Nessa vontade máxima

um medo que me desabita
uma alma que grita despedaçadamente
um rei que morreu, lá longe…
rasgam-se as veias em dilacerado ventre
mãe? onde morrem os teus filhos?
por um pedaço de terra?

nesta vontade máxima de frio
a terra que de abre de frente
pelo medo e vontade de gente
o amor é um axioma sentido

pelo fogo que vos arde no peito
desta verdade tão crua que aceito
já não há vinagre ou defeito
que eu vos possa apontar

também eu fui
pela estrada de luz,
pelo caminho que o rei me conduz,
grato vos sou,
pela pátria da voz,
neste fado gritado
onde a saudade somos nós…

Alberto Cuddel

Ecos lilases

Ecos lilases

Desses ecos que ressoam em paredes vazias
Perdidas as maças caídas no chão
Vestes rubras, ocas perdidas do ser
Há nesses ecos lilases ávidos de gestos
Uma real beleza que se perda na areia…

Onde nos morrem as palavras quentes?
Gritadas e gemidas em vales perfeitos e verdes
Onde nos mostram a real vida
Na bênção da loucura da mente
E morrem vazios os copos?

Ecos de um vazio conformado
Entre palavras secas e ocas de vida
Jazem os pés deitados em sentidos opostos
E camisas de noite amarelecidas na gaveta…

Há ecos lilases de um tempo que foi
Esse que não conta, esse que é apenas saudade
Do que um dia foi vida…

Alberto Cuddel

Se eu te deixar

Se eu te deixar

se eu te deixar amanhã
antes que o tempo finde
antes que o amor se odeie
saibas que o amor venceu,
antes mesmo de ter morrido!

Neste tempo vagaroso onde nada foi esquecido
Há um certo sentimento, neste gesto vencido
Que mesmo partindo roubando de ti a verdade
Tudo o que de mim deixo é… a dor da saudade!

se eu te deixar amanhã
antes que o tempo finde
antes que o amor se odeie
saibas que o amor venceu,
antes mesmo de ter morrido!

Em cada beijo dado, está no nosso legado
A cada momento de amor, está o suporte à nossa dor,
à cada despedida, essa verdade sentida, por amor nos tivemos
Por amor nos deixamos, mesmo que eu te deixe amanhã

se eu te deixar amanhã
antes que o tempo finde
antes que o amor se odeie
saibas que o amor venceu,
antes mesmo de ter morrido!

Alberto Cuddel

Desse “eu” tão completamente abstracto

Desse “eu” tão completamente abstracto

nascido que houvera o dia
por entre serras cansadas e mosto
catam o lume das lareiras e pão
esse cansaço tão dormente e tão só
a loucura por companhia e um cajado
um lápis rombudo e papel sujo…
curva-se o horizonte sobe o rio,
serpenteando os vales e as letras foscas que tecem a vida…

é na loucura que me encontro, amado o real
abstracto sou, prisioneiro do teu querer
ciclo vicioso da existência da vida, faço-me em nós
para que na morte exista

onde florir as macieiras e apodrecer as pêras
as abelhas irão dançar sob as flores dos morangueiros
ira chover e nascerão os cogumelos, esse fogo que arde
na cura do fumeiro que nos mata…
e tudo é tão abstractamente real…
tudo é tão duramente sofrido a cada sorriso…
e tu?
Desse “eu” tão completamente abstracto
Fazes da loucura a doce viagem lida
Pela existência da lucidez alcoólica
Impregnado no odor emanado pelo copo vazio…

Alberto Cuddel

Princípios indivisíveis pelo futuro…

Princípios indivisíveis pelo futuro…

ainda que não prove a existência de Deus
ele criou-a… e ela é…
nessa substancia liquefeita que me envolve
nesse amor condensado em substrato
tomado em doses pequenas, como que a medo
entrego-me sendo todo eu seu…

nessa busca pelo Deus que te habita a alma
descubro-te nua, despojada do pudor do pecado
puramente sóbria…
nessa eloquência de seres apenas quem és
um principio sem memória
indivisível pelos dias…

Alberto Cuddel

Arranca-me as noites duras…

Arranca-me as noites duras…

Leva-me daqui desta noite louca e ama-me
Como se na estrada não existisse destino
Beija-me neste sopro de vida que se extingue
Cada passo dado de uma música sem sentido…

Arranca-me das noites loucas onde me perdi
Faz-me encontrar no teu colo, abre-me a alma
Acolhe-me nos teus seios, abraça-me
Percorre-me a alma no beijo longo…

Arranca-me das noites duras
Encontra-me entre copos vazios
E corpos cheios de coisa nenhuma
Ama-me faz-me crer em noites puras…

Alberto Cuddel

Era para ser o último, mas antes aconteceu…

Era para ser o último, mas antes aconteceu…

era para ser o que nunca foi
antes mesmo de ter sido
essa ave que nunca voou
esse peixe que nunca nadou
esse réptil que não rastejou…
era para ser poema e não foi
era para ser prosa e foi curta…

era para ser amor, e apenas foi
era para ser para sempre e não foi…

era para ser corpo e foi alma
era para ser vil e aconteceu ternura
era para ser fiel e traiu
era para ser eu e não fui…

era para ser o último…
e aconteceu…

Alberto Cuddel

Nesta dor inflamada da realidade

Nesta dor inflamada da realidade

e ponho-me a meditar nos problemas que finjo…
do homem que fosse, como seria em vida,
não um animal dormente, mas o animal que sente
deveria ver e escutar como como ou bebo
de forma naturalmente natural
aprendendo o que é sentido e banal

assim como me roubam as palavras a cada vez que tremo
que seja nesta estupidificação da paixão a inconsciência
esse mistério universal de apenas te pensar
a noite não anoitece nos teus olhos
mas as minhas mão procuram o teu corpo
como a luz do sul uma tulipa acabada de florir…

assim é a essência da realidade o existir,
não o ser pensada
assim tudo o que existe, simplesmente existe
o resto é uma espécie de sonho que temos,
esse em que todos os orgasmos existem
pela vontade vã do prazer e sentir…
num ressarcimento corporativo da reciprocidade
um movimento de dor,
como um vírus que se espalha,
numa pandemia épica de um amor que se sente…

Alberto Cuddel

Esse corpo em que desabito

Esse corpo em que desabito

 

rasguem-me o peito e os seios

arranquem-me o coração e levem-no

de nada se me aproveita neste corpo que desabito

que alma é esta aprisionada entre braços?

 

aporto num rio sem foz, num cais tosco

um ribeiro seco de ideais, conformismo

um amar sem sal, nesta terra infértil

nada, nada, me ergue os braços, nada abraçar…

 

perco-me do tempo, uma amanhã que foi

um ontem que ainda será igual a depois

e as palavras que me fogem como punhais

enchendo-me de sangue as mãos vazias…

 

rasguem-me o peito e os seios

arranquem-me o coração e levem-no

levem-no nas garras de uma águia

deixem-me voar, livre, para longe

nessa distância onde vivo, sem rédeas…

 

Alberto Cuddel

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