Nas palavras a revoada

Nas palavras a revoada

No tudo que bafejo
Exalo a ficção do sentir
Quem sabe sonho, desejo?
Mera representação anacrónica da memória
Concepção impenetrável da alma
Vivendo por outros
Existindo em mim
Na força deprimente de não ser
Sendo todos ou ninguém…

Ódio carnal e estonteante
De mim próprio
Nos impróprios desejos da carne
Meu ser desastrado que nos odeia,
E ama em segredo na noite
De todas a mulheres do mundo
Maria!

Incompleta visão, destemido
Em todo o mistério oculto
Afinidade e concisão rogo
Genuflectido ao teu poder
Imploro a cada dia – amor
Um mero torpor nos dedos
Curvas disformes das letras
Arredondados seios, indigência das mãos
Inactivas e soltas, ainda que distantes!

Na revoada das palavras
Descuro todo o seu significado
Libertando a morte certa
Do fim, concedendo-lhe a eternidade!
Ainda que essa eternidade efémera
Se chame em mim apenas Maria!

Alberto Cuddel
18/05/2017
03:12

Céu disforme…

Céu disforme…

há um céu cinzento
sob uma clareira azul e seca
um sussurrar que se esquece
um silêncio rasgado de água

como uma coisa certa que nos minta,
como um grande desejo que nos mente.
chove. nada em mim sente…
nada do mundo que em mim já sinta

se chovesse ao menos, sob o sol do mundo,
qualquer seca e árida realidade não
esse eterno abismo sem fundo,
seria vida singela no fraco coração

ah, se chovesse ao menos em minh’alma
nessa hora final em que estorvasse
num voo suave me esvaísse
na liberdade certa de um céu disforme
seria vento seria lágrima, seria alento…

Alberto Cuddel
25/05/2020
18:07

In: Nova poesia de um poeta velho

Poema I

Bem… O Alberto Cuddel andava a escrever umas coisas que até dá medo…

Poema I

Rebentam estridentes as palavras escritas
Como uma granada sem pino em percursor livre
Sem medo da condenação
Vivendo uma liberdade condicional imposta
Por regras carregadas de pudor e temor a deus

Há filosofias engalanadas de um amor supérfluo
Sem essa fisicalidade dos corpos
Que tantos chamam foder
E foder é tão sublimemente humano
Assim como fazer amor…
Mas foder é sem dúvida estar vivo…

Amo, amo como nunca amei
Pacientemente…

Nessa translúcida metáfora
que é engalanar o orgasmo poetico
sentido pelo abraço literário…
Foder é a arte suprema do gemido
Onde a masturbação poética do fonema
arranca-nos aplausos da alma…

Literalmente poeta, filósofo da conjugação sexual
Lambendo rimas e métricas,
Até que no êxtase da alma nos falte o ar…

Quanta filosofia vã essa a de que o amor é…
Quando o amor se faz, também nas mãos…

Alberto Cuddel
20/02/2019
13:55

#osuaveaconchegodopoema

https://albertocuddel.wordpress.com/category/alberto-cuddel/

Supérfluas

Supérfluas

Sempre neste mundo haverá a luta,
Sem decisão nem vitória,
Entre o que se ama e o que não há
Meramente porque existe,
O que ama o que há
Porque ainda não existe.

Sempre, sempre, haverá
O abismo entre o que renega
O mortal porque é mortal,
E o que ama com todo o amor
E não deseja que morresse.

Ainda que a morte
Absorva apenas os bons
Os odiados nunca morrem
Apenas quebram-se os vasos
As flores que nunca murcharam…

Alberto Cuddel
18/05/2017
03:23

Cómoda

Cómoda

Era apenas uma cómoda
Com gavetas e segredos
E nela todos os sonhos
Que sozinhos voavam!

Alberto Cuddel
18/05/2017
05:58

Antes do princípio apenas o fim

Antes do princípio apenas o fim

há antes de tudo um rio
depois um mar e o sol
as voltas da vida, transpiração
o querer, o bater e a doce ilusão.

depois há um prólogo de anúncio
e antes de tudo há um fim
a desilusão e a dor do nascimento

nessa explosão de magma quente
o passado cobre-se de cinza
– pleno esquecimento da saudade…

e antes do princípio apenas o fim
essa dor do esquecimento do ventre
abandono do conforto…
– a dor de viver
sobrevivendo à carência da alma…

Alberto Cuddel
27/05/2020
17:15
In: Nova poesia de um poeta velho

Ondas

Ondas

As mesmas que se quebram
Que se enrolam e escorrem
Numa areia mexida, remexida
Misturada entre espuma e algas
Nuvens que encobrem os dias
Chamamento da saudade
Cadência que me acalma
No doce e odioso canto do mar
Vai, vai, um dia irás voltar?

Alberto Cuddel
18/05/2017
00:27

Seco o sonho de chuva

Seco o sonho de chuva

– humedeceste os lábios finos
pedras soltas atiradas pelo vento
e o destino quem o soubesse?

no espaço sepultado da fome
rasga-se o desejo da sede
procura mundos e fundos
mares e marés nesse querer fecundo
maternidade que te abandona o corpo

cânticos de Salomão
– ilusão dos seres mitológicos
sereias que me embalam
que me venham as virgens de candeia
a força de Sansão, o uivo materno
esse alimento de gémeos…
multipliquem-se os peixes e a fome
voz que sacia os espíritos,
acalmem-se as águas…
que seja pedra a força e a voz
edifique-se sobre ela a poética
neste sonho seco de uma chuva mórbida
de silêncios lidos em lábios gretados
clama o deserto por lucidez
e pendem-me espadas de calcário no olhar
pela inveja mesquinha do homem novo…

Alberto Cuddel
23/05/2020
19:15
In: Nova poesia de um poeta velho

Desistência da salvação

Desistência da salvação

há na incerteza da neblina
a virtude da bóia atirada como salvação
entre o luar de uma enseada
nobre vida rasgada do ventre

só o sacrifício fútil
de desejar sem querer
e sem razão esquecer
irá condenar-te a virtude da existência

talvez o sol se esqueça
o movimento pare
o inferno nos abocanhe
talvez seja isso
ou um deus adormecido

a alma passa, a alma vive.
ninguém. só eu e o segredo
do luar e do arvoredo
e este medo, esta virtude de não ser…

desistência da salvação
expiação dos pecados mortais
causados na ingerência
da idade das consequências…

Alberto Cuddel
22/05/2020
08:20
In: Nova poesia de um poeta velho

Choca-me a saudade despida de desejo…

Choca-me a saudade despida de desejo…

choca-me essa saudade de beijo,
e não esse querer absoluto de um abraço desnudo…

nessa carência que mata, quero-te
como se o mundo acabasse
quero-te ali, comigo, em mim inteira
quero a explosão absoluta de um orgasmo
dessa entrega louca e movimentos firmes
esse despudor desavergonhado
gemidos absolutos, saliva que escorre
língua que te enlouquece,
quero-te nessa saudade que rasga,
no aperto que estremece, na explosão fálica na boca
beijo cremoso que nos condena,
e depois abraço, espera, mãos que percorrem,
dedos que tacteiam, olhares que falam
corpos arqueados, electrificados
e que se fodem outra vez,
pode ser e é… amor que se faz,
prazer que se desfaz,
certezas e desejos, bocas e beijos
não quero saudades mornas,
nem sexo brando…
quero tudo e apenas tudo
porque do pouco
não se sacia a alma…

Tiago Paixão
#Afúriadasaudade
23/05/2020

Desde ontem

Desde ontem

Aqui, precisamente aqui
Desde ontem, ou já
Cansaço ladeado de flores
Separados pela distância do ponteiro
Um acordar
Manta que deslaça de quente
Sentir que se governa
Decide e impera
Dormindo na traseira do dia
Na esperança da noite fechada
Calado, olho, reparo, concentro
Cuidado,
Voltas e reviravolta de uma vida
Estupidamente fingida
Viagem vertiginosa dos minutos…
Espero,
Esperas,
Dormes,
Acordas,
Sob uma manta quente
Que te separa de mim
Assim,
A vida nos encobre
Sob o olhar desconfiado dos dias!

Alberto Cuddel
19/05/2017
05:46

Neste acreditar sem Fé

Neste acreditar sem fé

depois do tudo que é,
sem bom dia e sem abraços…
creio antever ver que ira ser
nada será como é, e tudo será novo depois

acontece-me às vezes,
e sempre que acontece é quase de repente,
surgir-me no meio das sensações um cansaço
tão terrível da vida, do que já foi,
não há sequer hipótese de um acto
de beijo, de contacto

como dominá-lo? esse desejo de afecto
essa vontade de ter, de receber de gastar e esbanjar
o que hoje não tenho, não temos…

para o remediar o suicídio parece incerto,
a morte espreita, mesmo suposta, a inconsciência,
há um toque fútil que contamina…
ainda pouco, um cansaço que ambiciona,
agarrei-me ao varão para o saber existir
— o que pode ser ou pode não ser possível
se doente estou porque vivo
e se de morto caminhante não passo…
neste acreditar sem fé
morro a cada dia, a cada instante…

Alberto Cuddel
22/03/2020
04:44
In: Nova poesia de um poeta velho

Sempre ou nunca

Sempre ou nunca

as noites morrem todos os dias
os dias nascem de todas as noites…
(…)
inevitavelmente persigo o tempo
todo aquele que perco
no qual me encontro nos teus lábios
nos sonhos recompenso-me
notícias que me nascem na consciência
alma voa pela letra da melodia
pisando flores, perfumando
a dura e bela essência da vida!
(…)
combates com obuses cor-de-rosa
que se calam ao poder económico
manténs o eu inviolável, e o nós?
caem crianças à morte sem vida
sob o peso do meu egoísmo
movimentam-se orações audíveis
braços elevados aos céus, à vista
mas cruza-os na solidão do mundo!
(…)
– talvez o amor te salve!
salvífica virtude, essa a de amar
sem homem, sem mulher, apenas amor
humanidade que te procura,
benevolência que te encontra,
(quanto nos vale o eu, o ter?)
quanto nos vale um sorriso?
os sorrisos acabam com as guerras!
(…)
sempre esqueceste o amor, o sentir
o decidir e perdoar, o buscar perdão!
nunca te importaste com o mundo?
tu bastas-te a ti próprio?
a felicidade reside em ti?
ou no mundo que te abraça?

Alberto Cuddel
18/05/2020
0:20
In: Nova poesia de um poeta velho

Hoje visitei o meu túmulo

Hoje visitei o meu túmulo

Desde que abandonei a vida poucos sentiram a minha ausência, nem mesmo tu Pyxis… nem mesmo tu, sempre soube que ninguém faz falta, mas uma réstia de esperança mantinha-me lúcido, vivo… Achei deveras interessante que a minha ultima morada fosse apenas terra, sem lapide, sem memorial, apenas a essência, como a vida, apenas porque é, apenas porque que se vive, não há jarras ou flores, apenas ervas daninhas e papoilas, elas que tanto alento me deram em vida, que me levaram pelos sonhos…

Confirmo o que sempre soube, ninguém absolutamente ninguém faz falta, o mundo continua, como dizia Alberto Caeiro:

“Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.”

Na realidade a realidade supre a nossa ausência, sim podes dizer-me que sim, sentistes a tristeza, a saudade, mas a vida encarrega-se de ocupar o meu vazio… quis, é verdade que quis, a vida não tinha já significância, na morte vejo com clareza, esse vazio que me habitava, tão cheio de tudo e de supérfluo… o que eu queria? Essa verdade inatingível, foi a morte que ma deu.

Dizia Pessoa na Elegia da Sombra:

Quem nos roubou a alma? Que bruxedo
De que magia incógnita e suprema
Nos enche as almas de dolência e medo
Nesta hora inútil, apagada e extrema?

Os heróis resplandecem a distância
Num passado impossível de se ver
Com os olhos da fé ou os da ânsia;
Lembramos névoas, sonhos a esquecer.

Hoje na hora em que visito o meu túmulo descubro-me como sempre me quis, apenas só, apenas vazio, apenas eu… mais ninguém, e tudo continua… mesmo depois da morte, a vida continua…

Sírio de Andrade

O bate que bate…

O bate que bate…

silêncio
o bate que bate na porta aberta
– ninguém entra ou sai por ela
sentado, nesse incomodo de estar
os ramos que batem nos vidros
os vidros polidos, baços, vazios…
depois que todos foram
e foi também a noite,
ficaram entre as sombras as vidas
esse fingimento da existência humana…
esse bate que bate e não abre
esse bate que bate e nada diz…
e foi, sem ter chegado, foi…

Alberto Cuddel
14/05/2020
12:50
In: Nova poesia de um poeta velho

Website Powered by WordPress.com.

EM CIMA ↑

%d bloggers gostam disto: